Calote legalizado


Rodrigo Badaró de Castro

Em fevereiro deste ano tive oportunidade de escrever um artigo alertando para o encaminhamento e a aprovação do projeto que modifica a forma de pagamento de precatórios. Não sendo uma surpresa, diante da pressão dos prefeitos e governadores devedores, há dias, com algumas modificações, o malfadado projeto foi aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça do Senado.

Assim, o débito hoje próximo aos 100 bilhões de reais deverá ser pago, numa expectativa otimista, em 15 anos. Obviamente dentro dessa mixórdia legal existe pelo menos uma coisa positiva: a obrigatoriedade de reserva de receita para pagamento das dívidas.

Contudo, restou decidido que 50% dos precatórios serão leiloados, podendo haver um deságio de ate 80% para o credor. Com relação à outra metade, 30% serão pagos em ordem crescente do menor para o maior valor e os outros 20% seguiriam a correta e lógica ordem cronológica.

Notamos mais uma vez que o Estado dá o mau exemplo, lembrando que quando tem créditos age com a fúria e intransigência de Shylock, o famoso credor do romance veneziano de Shakespeare, e quando deve invoca o interesse público e por meio de leis, como a presente, legaliza o calote. Todavia, para não parecer que somente oferecemos críticas, indagamos então qual seria a saída. Primeiramente, isso nunca ocorreria em um país sério, por princípios básicos e até de segurança jurídica, pois ganhar do Estado na Justiça não traz efetividade, ou seja, desacreditam-se o poder judicante e a ordem pública. Não seria de interesse público que milhares de pessoas recebessem seu dinheiro? Nada mais de interesse público do que fazer valer uma decisão judicial. Esse é o princípio basilar de um estado de direito e da segurança jurídica.

Por outro lado, deixando infelizmente a utopia e pisando novamente na realidade tupiniquim, indagamos o porquê de o Estado não aceitar ou facilitar a compensação dos precatórios com tributos? Hoje em poucos Estados verificamos leis nesse sentido e ainda com limitações temporais.

Se não bastasse, em muitos casos, precisamos novamente chegar ao Judiciário, diante de entendimentos diversos com relação à sua possibilidade em prol do preceito da cronologia da apresentação do precatório, o que é mais lamentável ainda.

Assim, se tenho um precatório, principalmente vencido, também não vou pagar meu Imposto de Renda, minha empresa não pagará o ICMS ou ISS, assim vamos compensando. Tratase não só de princípio legal válido e previsto no Código Civil em seu artigo 368 no sentido de que “se duas pessoas forem ao mesmo tempo credora e devedora uma da outra, as duas obrigações se extinguem, até onde se compensarem”, mas de um raciocínio lógico. Resta claro ainda o poder liberatório, previsto no parágrafo segundo do artigo 78 da ADCT (Atos das Disposições Constitucionais Transitórias), incluído pela Emenda Constitucional no30. Felizmente, o Supremo Tribunal Federal já vem se manifestando sobre o tema de forma favorável tanto no sentido de evitar limitações quanto ao uso do instituto citado como na legitimação constitucional de leis estaduais que autorizam a compensação.

Por que o Estado, em vez de provocar distorções e fazer valer uma situação assimétrica entre os cidadãos, não segue o caminho mais simples, promovendo a obrigatoriedade da compensação e abatimento de débitos não só de tributos eventualmente vencidos, como os vincendos? Garanto que isso resolveria boa parte do problema. Contudo, o Estado, pela duvidosa “supremacia do interesse público”, não pode perder arrecadação.

Uma pergunta permanece: o que mais será feito em prol do suposto interesse público? Enquanto isso os credores podem se sentar e esperar as estações passarem, sendo obrigados a pagar seus impostos. Um dia feliz pode chegar e receber, caso contrário, os precatórios na verdade serão quinhões de esperança para alguns herdeiros.

Artigo publicada no Jornal O Globo – 11/07/2008