Calote oficial


Rodrigo Badaró de Castro

Fomos criados e formamos nosso caráter guiados e estimulados por bons exemplos. Com isto buscamos trilhar a estrada profissional, pessoal e moral baseada nos valores da honra e da dignidade.

Lamentavelmente, o Estado que deveria servir naturalmente como exemplo a ser seguido intrinsecamente é o principal fator de desestímulo ao cumprimento desses valores, a exemplo do que ocorre com a tentativa de se impor ao País um novo calote, por meio da PEC 12/2006.

Dessa feita, não é por menos que a sociedade e advogados se encontram no epicentro deste caloroso debate acerca do tema. O que em verdade existe é nada mais que uma tentativa do Estado de não cumprir suas obrigações, não deixando à margem o notório interesse em um “calote oficial”.

É importante evocar o montante da dívida em precatórios de R$ 62 bilhões, que atinge cidadãos que lutaram anos na Justiça e ganharam, mas certamente não irão receber, principalmente caso seja aprovado o projeto, uma vez que credores de precatórios poderão levar até 50 anos para satisfazer seu crédito.

Em síntese, o ponto crucial do projeto é o desejo de quebrar a ordem cronológica constitucional para o pagamento dos precatórios. Pelo esdrúxulo projeto, o pagamento de precatórios seria fixado em 3% das despesas primárias líquidas do ano anterior nos estados e 1,5% nos municípios. Desse valor, 70% seriam direcionados a credores habilitados em leilão, onde o maior deságio prevaleceria na ordem de preferência, sendo os 30 % restante direcionados para precatórios alimentícios e de pequena monta, pagos na ordem crescente de valores.

Trata-se de nova tentativa de lesão ao direito dos credores, registrado na Emenda Constitucional 30, quando os entes públicos ganharam o privilégio de pagar em dez anos, em prestações anuais, iguais e sucessivas, as suas dívidas e obrigações.

Por absurdo, notamos a total assimetria que nós contribuintes vivemos, pois é sabido que somos vorazmente compelidos a pagar impostos e rigorosamente punidos em caso de descumprimento. Se não bastasse, registramos as exigências às empresas para quitação integral de todos os seus impostos para que o Estado faça o repasse de pagamentos de prestações de serviços legítimos, bem como exigência de extrema solvência para com ente publico para praticar sua atividade comercial, como registros, licitações, empréstimos etc… Ou seja, o Estado que exige tudo, cobra tudo e ao fim não honra seu dever não pode ser considerado como de Direito, pois é o pior exemplo para todos, sem olvidar dos escândalos que assolam a política no Brasil.

Neste contexto, é certo que ao legislativo cabe impor leis que busquem a igualdade social e ajustes na conduta e manutenção do Estado, todavia lembramos o glorioso Rui Barbosa que, profetizando, dizia: “No Brasil, a lei se deslegitima, anula e torna inexistente, não só pela bastardia da origem, senão pelos horrores da aplicação”. Portanto, notamos que o projeto tenta, em sua origem, aliviar a obrigação do Estado em detrimento de milhões de pessoas que honram seus deveres acreditando em exemplos que deveriam advir do Estado e que serão apenadas na aplicação da norma.

Isso posto, em especifico, os advogados, legítimos operadores do Direito e protagonistas na obtenção da vitória judicial geradora dos precatórios, devem se mobilizar no intuito de se buscar, por mais penoso que seja, uma forma menos traumática ao cidadão.

Diante do ambiente de insolvência do ente público, é certamente defeso tratar o tema de forma simplista lançando em frias notas o cumprimento do artigo 100 e seguintes da Constituição Federal, por mais incoerente a afirmativa diante da afronta assumida à Carta Magna. Assim, em face dos problemas de ordem econômica, devemos todos buscar estudos e mecanismos, não só judiciais, que possam aliviar o problema, mas que não seja um remédio rápido e simples como o calote no pagamento.

Devemos provocar a OAB e os demais órgãos de cunho jurídico para um debate, aproveitando-se de vários estudos de advogados e juristas já existentes, visando a uma medida de direito com respaldo socioeconômico, barrando a afronta que ora se configura por meio do projeto em comento.

Muitos podem dizer que seria utópico uma solução neste sentido, contudo o que não se pode é fugir ao dever de buscar alternativas menos lesivas aos cidadãos sem a quebra do Estado.

Artigo publicado no Jornal de Brasília, 05 de outubro de 2007