Carta de um Credor de Precatório


Carta de um Credor de Precatório


Rodrigo Badaró de Castro

Morri há cinco anos, estou enterrado no descuidado e pequeno cemitério de minha terra natal e me retirei do descanso eterno para encaminhar esta breve missiva a um articulista, que, por duas vezes, teve oportunidade de alertar nesse Jornal sobre o tema que me incomoda.

Em razão da inércia dos vivos e da solução frustrada que aguardava antes de falecer, resolvi encaminhar esta carta.Como outros brasileiros, fui um dos milhares de sem nome e sem importância e tive esperanças. Ganhei do Estado na Justiça um valor de complemento na minha já pequena remuneração.

Ao ganhar definitivamente pensei, há 30 anos, que no meu querido Brasil havia Justiça. Ao ganhar por sentença transitada em julgado, tomei uma cerveja com meus filhos e meu almoço foi mais rico do que o meu trivial arroz e feijão.

Pensei que minha vitória, diga-se, manifestação final da justiça, seria um alento ao tempo que passei sofrendo pela ilegalidade do inadimplemento do Estado. Pois bem !!! Os anos se passaram, falaram-me de um tal precatório, achei que seria uma carta de pagamento, uma espécie de cheque. Contudo, vi que não passava de uma ilusão.

Continuava pagando meus impostos e meu cheque nunca chegava. Meus netos nasceram e cresceram, os meus janeiros aumentaram e minha saúde foi se esvaindo e eu ainda pensando naquela vitória que comemorei anos atrás.

Com efeito, cumpri a trajetória de todos e depois de esperar 20 anos pelo meu cheque, conforme determinou a sentença, morri, como nossos legisladores irão perecer.

No silêncio do meu descanso eterno vi muita coisa mudar e pensei de forma humilde e até por minha culpa, que talvez não fosse meu destino receber esse cheque.

Quem sabe seria a herança que deixaria para minha sofrida família. E um sábio chamado Sêneca, que também repousa no campo santo de sua terra, disse em tom de alerta que – “qualquer homem prefere crer a exercer seu julgamento”. Contudo, de boa-fé, eu ainda acreditava em uma solução.

Infelizmente não. O Estado acabou com sonhos terrenos de milhares de mulheres e homens que esperam há anos pelo seu cheque e também daqueles que morreram sem recebê-lo, como eu.

Daqui, no meu sono eterno, vi artigos nesse respeitável periódico atacando a manobra espúria dos governantes, uns adjetivando de calote e outros como afronta e ilegalidade. Vi alguns movimentos da sociedade, principalmente juízes que querem preservar suas decisões e a legalidade, alguns advogados e entidades de classe e vi, com extrema tristeza, amigos e idosos chorando e lamentando nos noticiários sobre a lei que está quase se concretizando.

Por fim, sai do meu repouso eterno para saber que o Senado Federal aprovou a PEC 12/06 (ponto crucial do projeto é o desejo de quebrar a ordem cronológica constitucional para o pagamento dos precatórios). O pagamento de precatórios seria fixado em 3% das despesas primárias líquidas do ano anterior nos estados e 1,5% nos municípios.

Desse valor, 70% seriam direcionados a credores habilitados em leilão, em que o maior deságio prevaleceria na ordem de preferência,sendo os 30% restantes direcionados para precatórios alimentícios e de pequena monta, pagos na ordem crescente de valores), o maior calote e o maior desrespeito ao Estado Democrático de Direito. Pensei no tempo que esperei e depois de ter morrido sem ver meu precatório, pensei no cheque e na herança que deixei aos meus filhos, depois pensei nos meus netos que não irão receber nada.Cheguei à conclusão. Joguem o que restar do meu precatório na minha cova.

Talvez sirva de adubo para as belas rosas que começam a me fazer companhia e se for possível pagar algo, que escrevam como complemento em minha lapide: “O Estado cobra e não paga e o Brasil continua o mesmo”.

Com isso fico em paz….

Matéria publicada no Jornal de Brasília