Dano moral coletivo


Dano moral coletivo


Nas ações civis públicas tem-se observado, cada vez mais, a presença de pedidos requerendo a condenação dos réus por danos morais coletivos. Embora a tese de dano moral coletivo não seja nova, sua manifestação doutrinária e jurisprudencial ainda é tímida.

De fato, enquadrar-se-ia o dano moral coletivo no conceito de prejuízo de ordem moral manifestado no âmbito de um grupo de pessoas determinadas, ligadas entre si por uma relação jurídica base ou fato comum, ou transindividual indeterminável.

No entanto, como veremos a seguir, ao nosso ver, sua admissibilidade encontra como óbice a natureza reparatória albergada pelo Código Civil, bem como o caráter subjetivo, personalíssimo e indisponível que não admite legitimação extraordinária.

Alguns doutrinadores, todavia, posicionaram-se favoráveis ao dano moral coletivo de qualquer sorte, tendo-o como fruto do desenvolvimento do conceito de direito pró-sociedade, ou seja, aquele além do indivíduo.

Nesse sentido, a conclusão do mestre Carlos Alberto Bittar Filho, em seu artigo entitulado “Do dano moral coletivo no atual contexto jurídico brasileiro”:

“Vem a teoria da responsabilidade civil dando passos decisivos rumo a uma coerente e indispensável coletivização. Substituindo, em seu centro, o conceito de ato ilícito pelo de dano injusto, tem ampliado seu raio de incidência, conquistando novos e importantes campos, dentro de um contexto de renovação global por que passa toda a ciência do Direito, cansada de vetustas concepções e teorias. É nesse processo de ampliação de seus horizontes que a responsabilidade civil encampa o dano moral coletivo, aumentando as perspectivas de criação e consolidação da uma ordem jurídica mais justa e eficaz.”

Traduzindo posição semelhante, os dizeres de José Rubens Morato Leite :

“O dano extrapatrimonial coletivo não tem mais como embasamento a dor sofrida pela pessoa física, mas sim valores que afetam negativamente a coletividade, como é o caso da lesão imaterial ambiental. Assim, evidenciou-se, neste trabalho, que a dor, em sua acepção coletiva, é um valor equiparado ao sentido moral individual, posto que ligado a um bem ambiental, indivisível de interesse comum, solidário e ligado a um direito fundamental de toda coletividade. Revele-se que não é qualquer dano que pode ser caracterizado como dano extrapatrimonial, e sim o dano significativo, que ultrapassa o limite de tolerabilidade e que deverá ser examinado, em cada caso concreto. As dificuldades de avaliação do quantum debeatur do dano extrapatrimonial são imensas; contudo, este há de ser indenizado sob pena de falta de eficácia do sistema normativo. Portanto, compete ao Poder Judiciário importante tarefa de transplantar, para a prática, a satisfação do dano extrapatrimonial ambiental. Abrindo-se espaço para o ressarcimento ao dano extrapatrimonial, amplia-se a possibilidade de imputação ao degradador ambiental.”

De mesmo modo, o art. 1º da Lei da ação civil pública (lei nº 7.347/85) menciona que suas determinações têm como finalidade a reparação aos danos morais e materiais.

Com efeito, a jurisprudência brasileira tem-se dividido, ora admitindo ora se posicionando pela inadmissibilidade de tal figura dentro do sistema jurídico vigente.

Podemos observar caso julgado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo em 11.06.2007, em que a TVSBT – Canal 4 de São Paulo S/A foi condenada ao pagamento de indenização por danos morais coletivos em razão da exibição no programa “Domingo Legal”, sem aviso prévio quanto ao conteúdo, de reportagem abordando manifestação de inúmeras pessoas nuas no Parque do Ibirapuera.

No referido julgado, entendeu o E. Tribunal de Justiça que “é expresso na Lei 7347/85 a ação civil pública tem como uma de suas finalidades a reparação por danos morais e materiais causados a quaisquer dos valores transindividuais de que cuida a Lei. (…) a violação a direitos difusos não é, via de regra, patrimonial, mas sim moral, por atuar na esfera das convicções e impressões subjetivas de um número indeterminável de pessoas acerca dos fatos, bem como estas pessoas reagem a esses fatos.”

Em contrapartida, o E. Tribunal de Justiça, em oportunidade que se abordou pedido de condenação ao pagamento de dano moral coletivo em ação civil pública por improbidade administrativa do então Prefeito do Município de Cândido Mota que teria promovido servidores municipais independente da realização de concursos públicos e inobservância à planos de carreira, manifestou-se pela inadmissibilidade do dano moral coletivo, posto que intrínseco ao individuo :

“Respeitado o entendimento da MM Juíza, o dano moral difuso não é devido. Como decidido pelo Superior Tribunal de Justiça no Resp 598281, Relator Ministro LUIZ FUX, “Dano moral coletivo. Necessária vinculação do dano moral à noção de dor, de sofrimento psíquico, de caráter individual. Incompatibilidade com a noção de transindividualidade (indeterminabilidade do sujeito passivo e indivisibilidade da ofensa e da reparação). Recurso Especial improvido”.”

Em que pesem as considerações que admitem o dano moral coletivo in genere, nos parece mais acertada segunda corrente, que pugna pela inadmissibilidade desta figura.

Temos que o dano moral é, por sua natureza, personalíssimo, disponível e divisível. Não bastasse, o dano moral se faz repercutir de forma distinta para cada indivíduo. Assim, não se concebe sua aplicação para um número indeterminado de pessoas (direito difuso), por um grupo determinado unidos por um direito indivisível (direito coletivo) ou por várias pessoas tratadas individualmente (direito individual homogêneo).

Como bem observou o Exmo. Min. Teori Albino Zavaski, em caso em que se discutia a ocorrência de dano moral coletivo em virtude de dano ambiental :

“O dano ambiental ou ecológico pode, em tese, acarretar também dano moral — como, por exemplo, na hipótese de destruição de árvore plantada por antepassado de determinado indivíduo, para quem a planta teria, por essa razão, grande valor afetivo. Todavia, a vítima do dano moral é, necessariamente, uma pessoa. Não parece ser compatível com o dano moral a idéia da “transindividualidade” (= da indeterminabilidade do sujeito passivo e da indivisibilidade da ofensa e da reparação) da lesão.”

Tal precedente deu ensejo à seguinte ementa, bastante utilizada para corroborar a tese de inadmissibilidade da figura do dano moral coletivo tal como vem sendo preconizada nas Ações Civis Públicas:

“PROCESSUAL CIVIL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. DANO AMBIENTAL. DANO MORAL COLETIVO. NECESSÁRIA VINCULAÇÃO DO DANO MORAL À NOÇÃO DE DOR, DE SOFRIMENTO PSÍQUICO, DE CARÁTER INDIVIDUAL. INCOMPATIBILIDADE COM A NOÇÃO DE TRANSINDIVIDUALIDADE (INDETERMINABILIDADE DO SUJEITO PASSIVO E INDIVISIBILIDADE DA OFENSA E DA REPARAÇÃO). RECURSO ESPECIAL IMPROVIDO.”

Seguindo a posição contrária à noção de dano moral coletivo, manifestou-se Rui Stoco , em seu Tratado de Responsabilidade Civil:

“No que pertine ao tema central do estudo, o primeiro reparo que se impõe é no sentido de que não existe ‘dano moral ao meio ambiente’. Muito menos ofensa moral aos mares, rios, à Mata Atlântica ou mesmo agressão moral a uma coletividade ou a um grupo de pessoas não identificadas. A ofensa moral sempre se dirige à pessoa enquanto portadora de individualidade própria; de um vultus singular e único. Os danos morais são ofensas aos direitos da personalidade, assim como o direito à imagem constitui um direito de personalidade, ou seja, àqueles direitos da pessoa sobre ela mesma.

A Constituição Federal, ao consagrar o direito de reparação por dano moral, não deixou margem à dúvida, mostrando-se escorreita sob o aspecto técnico-jurídico, ao deixar evidente que esse dever de reparar surge quando descumprido o preceito que assegura o direito de resposta nos casos de calúnia, injúria ou difamação ou quando o sujeito viola a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas (art. 5º, incisos V e X), todos estes atributos da personalidade. Ressuma claro que o dano moral é personalíssimo e somente visualiza a pessoa, enquanto detentora de características e atributos próprios e invioláveis. Os danos morais dizem respeito ao foro íntimo do lesado, pois os bens morais são inerentes à pessoa, incapazes, por isso, de subsistir sozinhos. Seu patrimônio ideal é marcadamente individual, e seu campo de incidência, o mundo interior de cada um de nós, de modo que desaparece com o próprio indivíduo.”

Como adiantamos no início, a admissibilidade do dano moral coletivo vai de encontro com o próprio conceito de moral, tida como a repercussão individual de prejuízo de ordem extrapatrimonial. Nesta seara, em sendo a moral intrínseca ao conceito personalíssimo, não há de se entender como algo único e indivisível, a se manifestar de mesma forma para todos os integrantes de determinada coletividade.

Acrescente-se que o albergue do dano moral coletivo esbarra na natureza reparatória preconizada por nosso Código Civil.

Consoante se infere do disposto no art. 927 do Código Civil, inserto no Título IX “Da responsabilidade civil”, Capítulo I “Da obrigação de indenizar”, a reparação do dano causado pelo ato ilícito compreende a exata medida deste.

Vejam que nosso sistema reparatório não alberga a tese dos “danos punitivos” (“punitive damages”), prescrito pelas ordens jurídicas anglo-saxãs, que seria a repreensão pela conduta ilícita além da reparação própria do dano.

Nesta linha, de acordo com o Código Civil, verificada a ocorrência de um dano de natureza moral, sua reparação deve servir para amenizar o prejuízo sofrido, em sua justa extensão. Ora, se for possível a reparação efetiva, melhor. Senão, admite-se o pagamento de indenização em dinheiro, como forma de relevar-se a dor moral. Entretanto, ainda que a reparação venha em pecúnia, a quantia não poderá servir como prêmio à vítima, tampouco como forma de coibir aquele que praticou o ato ilícito a praticá-lo novamente.

Logo, para a condenação por dano moral coletivo, haver-se-ia a necessidade de análise de cada caso concreto, o que não se vislumbra viável no bojo de ação civil pública. Somente com a análise concreta e individual é possível reparar-se o dano moral em sua exata medida.

Destarte, dentro deste enquadramento da reparação civil, ainda que admitíssemos o dano moral coletivo, sua condenação deveria reverter-se às vítimas do dano, exclusivamente e de acordo com a extensão do prejuízo moral. Todavia, o que vemos são, em sua maioria, Ações Civis Públicas com pedido de vultosa indenização por danos morais coletivos, em quantia a ser vertida para o Fundo que trata o art. 13 da Lei nº 7.347/85:

“Havendo condenação em dinheiro, a indenização pelo dano causado reverterá a um fundo gerido por um Conselho Federal ou por Conselhos Estaduais de que participarão necessariamente o Ministério Público e representantes da comunidade, sendo seus recursos destinados à reconstituição dos bens lesados.”

Logo, concluímos pela inadmissibilidade do dano moral coletivo, quer em razão de seu caráter individual, personalíssimo, divisível e disponível, contrário à noção de coletividade; quer em razão da incompatibilidade do pedido genérico de condenação ante o sistema atual de reparação civil, à justa medida do dano. Por fim, ainda que se admitisse a figura dos danos morais coletivos, a respectiva indenização jamais poderia destinar-se ao fundo do art. 13 da Lei nº 7.347/85, ultrapassando a vítima do dano.