O Brasil mudou. O Cade também


O Brasil mudou. O Cade também


A multa de quase 353 milhões de reais à AmBev, a maior já aplicada pelo órgão, mostra que a defesa da concorrência subiu de patamar — e é melhor se acostumar com isso

Um leão sem dentes. Foi dessa maneira que o advogado Arthur Badin definiu o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), em seu discurso de posse como procurador-geral do órgão, em 2005. Naquela ocasião, Badin, alçado em novembro à presidência do principal órgão antitruste do país, referia-se à dificuldade de o conselho fazer suas decisões serem cumpridas. Olhando os números, o Cade parecia, de fato, um leão banguela. Entre 1994 e 2005, apenas 18% de suas sentenças haviam sido cumpridas pelas empresas. Menos de 4% das multas aplicadas entre 2002 e 2005 haviam sido pagas. Durante os três anos de sua gestão como procurador-geral — função em que uma das atribuições é defender o órgão na Justiça quando as decisões são contestadas por uma empresa —, Badin mudou o discurso. Passou a afirmar que o Cade tinha se transformado em um leão com dentes. Ele coordenou uma força-tarefa para analisar os casos em que as punições não haviam sido executadas e ajudou a elevar a média anual de multas recolhidas para 35 milhões de reais entre 2005 e 2008, ante apenas 2,9 milhões do triênio anterior. Até 2006, o órgão nunca havia inscrito uma empresa devedora de multa no Cadastro de Dívida Ativa da União. Hoje há 46 companhias com o nome sujo.

No final de julho, a metáfora utilizada por Badin ganhou uma nova dimensão. A multa de 353 milhões de reais à fabricante de bebidas AmBev, acusada de agir no mercado para restringir a venda de produtos da concorrência, é a mais alta já aplicada no país a uma única empresa. Até o fechamento desta edição, a AmBev ainda não havia entrado na Justiça para contestar a decisão, medida esperada no mercado. Independentemente do desfecho do caso, o aperto a empresas acusadas de práticas abusivas é considerado um avanço pelos especialistas em defesa da concorrência. “Essas decisões mostram que os órgãos brasileiros antitruste estão se fortalecendo, e isso é um sinal de que o país está evoluindo nos estágios do capitalismo”, afirma o advogado Marcelo Calliari, do escritório TozziniFreire. Desde 2002, foram mais de 3 500 casos de fusões e aquisições no Brasil nos mais variados setores, de acordo com a consultoria PricewaterhouseCoopers. O mercado, portanto, se concentrou. Empresas maiores, que buscam escala até por uma questão de sobrevivência no mercado internacional, naturalmente têm mais armas para atacar a concorrência — nem sempre dentro dos limites considerados saudáveis. “Teremos de nos acostumar com mais multas, e cada vez mais altas, porque as empresas vão acionar cada vez mais o sistema de defesa da concorrência. É assim nas economias mais modernas”, diz Calliari.

Mas por que as punições às empresas são consideradas positivas se o objetivo no mundo dos negócios é competir — e, obviamente, ganhar cada vez mais? A resposta está na necessidade de regular uma contradição intrínseca ao sistema capitalista. A luta para ser o melhor e o maior faz parte da natureza humana e é a alma e o motor do capitalismo. “É isso que propicia a concorrência. Mas, na tentativa de ampliar seus domínios, não raro as empresas são tentadas a eliminar a concorrência. É justamente para impedir que isso aconteça que existem os órgãos antitruste”, afirma Badin. “Funcionamos como zeladores do capitalismo e, para isso, temos de agir para que exista competição, e não deixar que ela seja extinta.” De acordo com ele, quando uma empresa fica praticamente sozinha num setor, muitas vezes perde o estímulo para inovar e aumentar a eficiência: “A falta de concorrência gera acomodação e, inevitavelmente, leva ao aumento de preços para o consumidor”.

Na tarefa de zelar pelo sistema, o Cade conta com aliados poderosos — as próprias empresas, sejam elas concorrentes ou clientes. Geralmente, são elas que denunciam os excessos. Foi o que aconteceu com a AmBev, acusada pela Schincariol. Embora a punição aplicada à AmBev chame a atenção pelo valor absoluto, outras penalidades recentes foram, proporcionalmente, mais pesadas. No Brasil, as multas podem ir de 1% a 30% da receita bruta — a da AmBev ficou em 2% do faturamento. Já os 40 milhões de reais pagos pela cimenteira Lafarge, após admitir há dois anos que participava de cartel do setor (as investigações em relação a outras participantes ainda não foram concluídas), equivaleram a 10% de seu faturamento.

O atual presidente do Cade personifica a nova fase do sistema de defesa da concorrência no Brasil. Além da faxina promovida na promotoria, Badin conseguiu sustentar várias decisões do Cade na Justiça. Um de seus feitos foi a derrota da Vale, em todas as instâncias, num processo que obrigou a empresa a abrir mão de direitos de preferência na compra de minério excedente da mina Casa de Pedra, pertencente à CSN. Com isso, Badin ganhou muitos inimigos. No ano passado, quando seu nome foi indicado para a presidência do órgão, representantes de algumas companhias fizeram campanha no Senado contra ele. As acusações eram de que ele não tinha perfil para chefiar o conselho por ser pouco flexível e muito jovem. (Badin tem hoje 33 anos de idade.) Ao que tudo indica, sua figura continua incomodando. Um ex-conselheiro afirma que o temperamento forte está provocando seu isolamento no órgão. Alguns conselheiros reclamam que Badin não costuma ouvi-los, tentando sempre forçar sua opinião. Outra reclamação é que ele costuma chamar demais os holofotes para si.

Badin, no entanto, não é o único leão com dentes no Cade. No episódio específico da AmBev, ele se declarou impedido de participar do julgamento por ter ajudado a investigar a empresa, entre 2003 e 2005, quando trabalhava na Secretaria de Direito Econômico. O algoz da empresa foi o conselheiro Fernando Furlan — sim, primo de Luiz Fernando Furlan, sócio da Sadia. Aos 40 anos, Furlan é advogado e administrador de empresas, com mestrado em relações internacionais e doutorado em direito, ambos pela universidade francesa Sorbonne. Já atuou no órgão como procurador-geral, entre 2001 e 2003, e assumiu o posto de conselheiro em janeiro do ano passado. Foi sorteado relator do caso AmBev. O relator, sempre um dos sete conselheiros do órgão, tem a missão de estudar o relatório da investigação realizada pela SDE e apresentar seu voto aos demais. O voto de Furlan foi um documento de 122 páginas, que demorou mais de 3 horas para ser lido pelos demais conselheiros. O resultado da votação foi unânime.

A SDE é peça-chave para o avanço do sistema de defesa da concorrência no país. Na última década, as leis avançaram e deram à secretaria instrumentos novos de investigação, como a possibilidade de realizar inspeções, buscas e apreensões em empresas. O caso AmBev, cuja investigação foi iniciada pela secretaria em 2003, foi o primeiro em que seus técnicos realizaram inspeção dentro de uma companhia. Os arquivos localizados no computador do executivo responsável pelo Tô Contigo — programa de fidelização de bares e restaurantes que gerou a denúncia da Schincariol — mostraram detalhes de práticas consideradas abusivas. Elas incluem uma espécie de treinamento dos vendedores, com orientações de como abordar donos de bares e indicações de prêmios a oferecer em troca da fidelidade à AmBev. Os documentos indicam que a empresa exige que os estabelecimentos vendam apenas produtos com sua marca ou, no máximo, 10% de cervejas de concorrentes. Além da exclusividade, a AmBev inclui no programa apenas os clientes bons pagadores, os mais bem localizados por região e com maior volume de vendas — relegando os inadimplentes ou os menos interessantes para a concorrência. EXAME apurou que a AmBev deve argumentar na Justiça que não pedia exclusividade aos estabelecimentos comerciais e que a multa foi desproporcional à abrangência do programa de fidelização, restrito a 10% dos bares e restaurantes do país. Procurada pela reportagem, a empresa não quis se manifestar.

O fato de o Cade e os demais órgãos de defesa da concorrência se mostrarem mais fortes não significa que suas decisões são ou serão as mais acertadas sempre. Por isso mesmo, as empresas têm o direito de recorrer das decisões do órgão na Justiça, o que provavelmente a AmBev fará. O amadurecimento da defesa da concorrência no país, de todo modo, é bem-vindo. O primeiro código antitruste foi criado em 1890, nos Estados Unidos, e resultou até na divisão de empresas, como ocorreu com a Standard Oil e a AT&T. No Brasil, o conceito é novo. “Até a década de 90, o Estado controlava preços, tinha o monopólio de inúmeros setores e mantinha o país praticamente fechado a produtos estrangeiros. Quase não havia competição”, afirma o advogado Marcel Medon, do escritório Azevedo Sette. “Só com a abertura comercial e as privatizações é que o tema regulação da concorrência ganhou importância.” Não deixa de ser um retrato de um novo Brasil — e, nele, o papel do xerife antitruste será cada vez mais relevante.

Matéria publicada na revista Exame